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O surgimento de “Cegueiras na calçada” é, simultaneamente, revolta e liberdade. Revolta por ser demasiadamente demorado o encontro de si com a própria voz; liberdade pela clareza de vida que tal encontro demanda e carrega.  Se não saber ler é ser cego, não poder falar é ser ninguém.

Conheci Adélia há quatro anos, em uma visita domiciliária da Unidade Básica de Saúde na qual estava fazendo um dos estágios da faculdade. Percebi, imediata e com pressa, a ambivalência senão de tudo, de muita coisa. Era ambígua a casa arrumada e alegre nas cores, com gente tão guerreira, mas também tão triste habitando os pequenos e poucos cômodos. Era ambíguo o bairro no qual corriam crianças com fôlego infinito, mas no qual também havia a criminalidade das periferias da cidade. Era ambíguo o olhar da senhora passiva e furiosa; era ambíguo o meu olhar passivo e furioso.  E, assistindo à vida dessa Adélia passar, em um semestre, aprendi a ser minimamente a melhor Adélia que poderia me conceder a permissão de ser. Fui, então, sendo audaciosa; incluí Adélia em tudo que faço, em tudo que penso, em tudo que sou. Porque Adélia são todas; e, ainda que em percepção limitada, todas são Adélia em alguma esfera de vida.

Brinco que nasci com as palavras roubadas da boca. A voz que tanto buscava não me era conhecida até que decidi contar a história da mulher que varria a calçada diariamente, sem saber enxergar o mundo como desejara sempre. Sem fala, nasci, cresci e, de certo modo, renasci. Ao olhar a casa, que, aqui, apesar dos elementos figurativos fictícios, pode ser imaginada como a casa de muitas Adélias pelo Brasil e outros cantos do mundo, senti que havia virado gente; gente grande, gente de verdade mesmo: gente com fala e com desejo de falar. E desejo de ser ouvida. Chamada de precoce para tudo que é tardio e tardia para tudo que é precoce na vida, deixei-me levar pela precocidade de Adélia: os absurdos da violência, as tentativas de viver sem ter que, necessariamente, lutar para sobreviver, as preocupações, a cegueira, a mudez. Olhar a casa e a sua moradora, naquele dia de abril em que o sol apontava desejoso, efervescente, foi meu chamado para elevar vozes há muito caladas: a minha e, claro, as que, neste livro, representam quaisquer Adélias - que são muitas.

Fui a última da minha classe a aprender a escrever com começo, meio e fim. Todas as semanas, voltava à casa com uma tarefa errada a ser corrigida; não conseguia encontrar como os contos de fada começavam, quando tinham seu clímax - Cinderela perdeu seu sapato de cristal! - e muito menos quando terminavam - no “felizes para sempre” ou não. Para mim, perdia o sentido a história tão linear assim. Conto esse fato a fim de justificar minha escrita, por ser a história de Adélia melhor compreendida se lida da forma como resolvi honrá-la: marcada, sim, pelo relógio velho do Antônio, mas também caotizada pelo tempo que não passa no pé do morro da biqueira mais famosa da cidade. Porque o tempo não passa para a Adélia como passava para o seu redor.

Depois de Adélia, aprendi a escrever em primeira pessoa; escrever para ser lida, ouvida, talvez sentida. Cada canto de cada letra de cada linha exibe um retrato do que vi, ouvi ou vivi. A literatura que faço em “Cegueiras na calçada” não é cega; é registro do que, um dia, foi verdade a quem escreve ou a quem inspirou a escrita - mesmo sem saber que pode fazê-lo.

 

Diria que os olhos de que fala são aqueles ali da esquina entre o já e o nunca mais. Acreditaria em toda e qualquer palavra dita pelos novos lábios. Diria que os fios pálidos que se vê são aqueles lá do curso d’água, antes do além e depois do aqui. Acreditaria em nunca mais tocar umidade. Tudo é letra escorrendo no vidro após lavagem da calçada de terra.

Cegueiras na calçada

SKU: 0046
R$ 47,00Preço
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